sábado, 4 de dezembro de 2010

Estilhaços de uma Passagem



[19 de Março 10:23 am]
Ele voltará. Ele voltará e as marcas irão acompanhá-lo. A dor voltará e tudo vai ficar exactamente como neste momento.
Eu voltarei a esta mesma posição: sentada no frio chão da cozinha, encostada à parede abraçando os meus joelhos com toda a força para me sentir protegida.
A gaveta das facas está à distância de um braço. Ignoro-a.
Enquanto choro, sinto cada lágrima a descer pela face negra, dorida e em sangue. Desta vez fora mais violento. Usara o candeeiro da minha mesa-de-cabeceira, enquanto me puxava os cabelos que agora reparava já não estarem agarrados à minha cabeça.
Eram os estilhaços da sua passagem e continuaria a ser sempre assim.

[madrugada de 19 de Março]
A campainha suou estridente acompanhada de gritos exasperantes. Contornei a minha cama vestindo o robe a meio caminho. Agradeci mentalmente a Deus por ter permitido que a minha filha ficasse na casa da amiga e não acordasse com aquele barulho.
A campainha voltou a ser pressionada com violência.
Olhei pela ocular da porta e os meus piores medos tomaram forma naquele ser bruto parado em frente da minha porta.
Abri a porta antes que ele a mandasse abaixo e permiti que ele me agarrasse pelos cabelos, mais uma vez. Mais uma vez, não tivera força para permanecer quieta e fingir que ninguém estava em casa. Mais uma vez, pensara que ele mudara, apesar dos gritos que ouvia. Mais uma vez, deixei que me batesse e abusasse de mim.
Pela terceira vez esta semana, ele entrara na minha casa, espancara-me, violara-me e ameaçara matar-me. A mim, e à minha filha. Se não fosse por ela eu já não estaria cá.
Quem tomaria conta da minha pequena? Quem? O pai dela sofrera um AVC há três anos acabando por morrer, os avós estão velhos e sem forças, não temos mais família, sou só eu e ela, ela e eu.
Ele voltou a puxar-me para si enquanto tentava arrastar-me para o chão. “Ainda não acabei” ouvi-o dizer. E recomeçou. Os puxões, as estaladas, as invasões insaciantes ao meu corpo.
Os meus olhos já não abriam e sabia que estava perto de perder a consciência. “Olha para mim, sua cabra!” gritou, girando a minha cara com violência, provocando, desde logo, mais dor. Senti o quente da lâmpada bater-me e apercebi-me que o candeeiro voava de novo na direcção da minha cara ensanguentada. Não aguentei mais o pânico interior e o meu cérebro simplesmente se fechou.

[19 de Março 10:30 am]
Lembro-me de acordar cortada e marcada. Não aguentara ver-me ao espelho e tapara-me logo com o roupão.
Estava horrível e eu sabia-o. Tinha de fazer queixa e eu sabia-o. Sabia também que não era a única e que havia mais mulheres na minha situação, ou até pior. E aquele monstro brincava com todas elas.
Temi pela minha filha.
Se algo me acontecesse quem a ajudaria? Como a salvaria?
Ele precisava de uma lição e eu não a conseguia dar apesar da muita insistência por parte das minhas amigas e colegas de trabalho. Até a minha filha me pedira para fazer queixa, para levar aquele monstro à justiça, mas eu, confiando cegamente no coração das pessoas, pensei que fosse mudar, que era apenas passageiro.
No entanto, numa coisa todos estavam certos. Ele só acabaria quando morresse alguém.

***
20 de Março
Mulher é assassinada pelo ex-namorado à porta de casa.
Alegado homicida foge antes da polícia chegar ao local e barrica-se numa casa perto da zona, confessando o assassínio da mulher.
Uma mulher de 35 anos foi hoje mortalmente esfaqueada enquanto saía para comprar pão. A filha de 14 anos, que entretanto chegava da casa de uma amiga, assistiu a tudo e está neste momento a receber apoio psiquiátrico.
Uma amiga da vítima confirma que esta era também vítima de maus tratos e que já fora violada vezes sem conta pelo homem que a matou. A mesma fonte garante à impressa que esta senhora não era a única e que como ela havia outras mulheres, que nunca chegou a conhecer.
Depois de horas de negociações, o homicida entregou-se oferecendo alguma resistência, no entanto foi rapidamente encaminhado para um estabelecimento prisional, aguardando agora julgamento em prisão preventiva.

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