sábado, 11 de junho de 2011

A força para além do Homem


A força para além do Homem
Dizem que o tempo cura tudo. Dizem que é possível esquecermos algo que realmente nos marcou. Dizem que podemos simplesmente seguir em frente. Mas às vezes isso não é possível. Falar é fácil e só quando fazemos parte de uma situação dessas é que percebemos o quão vulnerável somos. Somos confrontados com a nossa mortalidade, com a fraqueza da nossa condição humana frente à grande Natureza.
Toda a minha vida pensei que estava seguro. Que nunca nada me aconteceria. Que coisas más só aconteciam aos outros. Até que um dia tudo isso mudou.
Não há dinheiro no mundo que pague – e apague – a escuridão daquele dia. Talvez seja o karma, talvez o destino. Nunca fui homem de acreditar em tais coisas, mas quando confrontado pela morte daquela forma, tudo começa a fazer sentido. É o ser humano a tentar explicar o que se passa no planeta, sem sucesso. Há coisas que simplesmente não se explicam, vivem-se.
* * *
[10:00am]
A manhã acordava preguiçosa. Madame Bertha, a criada, entrava sorrateiramente no majestoso quarto abrindo as cortinas, uma atrás da outra. Os olhos do homem deitado esforçavam-se para se adaptar à luz e quando terminavam, um bocejo enviava a empregada de volta ao corredor, antes que o patrão ralhasse com ela por tê-lo acordado. Uma a duas horas mais tarde, dependendo dos dias e da agenda, alguém vinha chamá-lo para o pequeno-almoço. Grandes corredores embelezados com enormes varandas e janelas, com cortinas de seda e móveis da melhor madeira, levavam-no até ao grande salão das refeições. A mesa já se encontrava posta com um manjar que dava para alimentar dez pessoas, porém ali só ele e a mulher comiam todas as manhãs.
Esta manhã as notícias que vinham nos jornais eram agradáveis. Como sempre a sua fotografia ocupava grande parte das capas. Como chefe absoluto do governo não havia outra forma. As pessoas tinham de ser controladas e quem estivesse contra, deixaria de estar. Nada, nem ninguém, no Mundo o arrancaria daquele pedestal. O País era seu por direito.
[12:46am]
Os preparativos para o almoço com os seus conselheiros estavam avançados e a sua chegada ia ser anunciada muito em breve. Um salão de festas bem no centro da maior cidade do seu país enchia-se de empregados apressados e homens engravatados. Mais uma vez discutiriam a realização de eleições. Eleições essas que eram ridículas. Ninguém votaria. Ninguém se candidataria. Ele não o permitiria. Eram discussões desnecessárias, mas parte dos Ministros queria mostrar ao resto do mundo que se faziam reuniões importantes no nosso país. Reuniões essas que acabariam como começaram.
[1:00pm]
A chuva lá fora adivinhava uma tempestade. Os trovões e os relâmpagos rasgavam o céu habitualmente azul celestial. Vários seguranças aguardavam a sua saída do carro para o escoltarem até à zona da reunião.
Todos se levantaram e cumprimentaram aquele que nunca mais seria o mesmo.

[2:22pm]
As luzes do salão piscaram. Os microfones acusaram interferências. Tudo se silenciou quando a luz se apagou de vez.
- Pedimos desculpa pelo incómodo, Senhor Presidente. A tempestade está forte lá fora. Muito em breve os geradores serão ligados. – Os geradores não chegaram a começar a trabalhar.
Os copos andavam pelas mesas à medida que a Terra tremia. Os empregados entreolhavam-se e alguns ministros preparavam-se para cumprir as medidas de prevenção.
[2:27pm]
A Terra parara de tremer.
- Foi só um susto, voltem para os vossos lugares, seus cobardes. – Gritou o Presidente àqueles que já saiam da sala. Os geradores cumpriram a sua função e a reunião foi retomada já sem algumas pessoas, porém não durou muito mais.
[3:33pm]
Um abalo sísmico deitava abaixo casas e casarões. O tecto da sala de reuniões ruía sobre as cabeças da multidão. O pânico instalara-se. Pessoas fugiam enquanto podiam. O Presidente gritava por ajuda. Salvara-se por pouco: um pedaço do tecto aterrara a centímetros dos seus pés. Um ministro gritava para que o ajudassem a soltar-se de baixo de um bocado de betão do tecto. Os gritos foram silenciados por mais uma réplica, quando mais um pedaço do tecto – o pedaço que faltava – caía em cima dos seus colegas de trabalho.
Tentou rastejar até à rua. Talvez lá alguém o reconhecesse e o ajudasse. Afinal, era o Presidente, o General Absoluto, o Senhor da Guerra e do Petróleo.
* * *
Quando consegui chegar ao exterior, uma nuvem de pó cobria toda a rua. Os alarmes dos carros esmagados ainda apitavam, algumas casas desmoronavam-se como se fossem um simples baralho de cartas. Havia pessoas a gritar e a fugir. Crianças a chorar e mortos. Muitos mortos pelas ruas. Lembro-me de me ter apoiado num poste para pedir ajuda. Os poucos sobreviventes olhavam-me. Os seus olhos apavorados nem paravam duas vezes em mim para darem assistência.
“Devia ser deixado aqui para morrer” – dissera-me uma senhora. Estava agarrada ao braço ensanguentado e tinha os olhos inchados da poeira e das lágrimas. – “perdi o meu marido, os meus dois filhos e o meu pai. Se tivesse um presidente que nos construísse casas com protecções, hoje poderia estar mais descansada a segurar os meus filhos nos braços debaixo de uma mesa na minha sala de jantar. Só esperando que o abalo passasse. Vivemos numa zona sísmica, era só uma questão de tempo” – a senhora caminhara para longe de mim. Gritou quando outra réplica se fez sentir. Embora pequena esta réplica atirara ao chão o que sobrara das casas pobres e mal construídas. A culpa daquela miséria, daquele desespero, de todas aquelas mortes era minha. Apoderara-me de todo o dinheiro que por mim passava. Sempre pensei que conseguissem lidar com os acontecimentos, com a pobreza. Mas nunca idealizara o poder da Natureza.
E naquela hora, ali estava eu. Já não sentia o meu coração dentro de mim quando alguém me socorreu. Lembro-me de acordar uns dias mais tarde. Estava num hospital improvisado. As pessoas à minha volta, tirando os moribundos deitados em colchões, falavam inglês.
Passados oito meses, continuo a não conseguir dormir. Os pesadelos assombram-me sempre que fecho os olhos. Aquelas pessoas. Aquelas mortes. São os meus fantasmas. Consomem-me por dentro levando-me a cometer actos que nunca antes pensara fazer. A minha mente só pensa em dor. De alguma forma tento confrontar-me com aquela culpa, com aquele desespero. Fui avaliado por diversos psicólogos e psiquiatras: dizem que tenho stress pós-traumático. Deram-me uns comprimidos e mandaram-me tirar umas férias. Nada apagará aquele momento. Não há comprimidos, religião, ou máquina que apague aquilo de mim. Por isso, só há uma forma de acabar com este sofrimento.
Amarrei com força o lençol ao lustre do quarto do hotel onde estou hospedado há quase sete meses. Ainda em cima da mesa de centro, enrolei o lençol ao meu pescoço revivendo toda aquela dor e todo aquele terror. Há coisas que simplesmente não se esquecem. Há coisas que simplesmente estão para lá de nós. Fui vencido pelo medo. Fui vencido pelos meus próprios monstros. Mas nunca fui um homem fraco. Isso tenho a certeza. Aquele Mundo era, simplesmente, mais do que eu podia aguentar.
Saltei da mesa e rezei. Rezei até cair numa escuridão profunda.

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