sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A aposta de Sargão



- E mais uma ronda por minha conta!
O Rei Sargão I, ou o grande Sargão da Acádia, exibia os seus valorosos punhos enquanto comemorava a sua última vitória, arrecadando para o seu já grande império, o último reino da Mesopotâmia – a Suméria. A fertilidade dos seus solos era uma dádiva de Ishtar, a deusa da natureza e da fertilidade, e não havia um único imperador que não quisesse aquele excelente solo para cultivar as suas raízes. – Têm de admitir meus senhores! Sou o melhor Imperador que a história já conheceu e conhecerá! Ur é minha e agora não farei mais nada a não ser procriar com uma bela esposa que escolherei para que o nosso filho cresça forte e pronto para arrasar com os persas! – As canecas de madeira bateram umas nas outras intensificando o desejo do seu ensis.
- Antes dos persas terás de arrancar-me da vizinhança, velho Sargão. – A chegada do Rei da Babilónia, terra fronteiriça com o Império Acadiano e Persa, era prevista. Era talvez o único rei que se mantinha afastado das lutas nos últimos anos. Sabia-se que conseguia os reinos por oferendas dos vizinhos e que, como era excelente líder, muitos governadores entregavam-lhe as suas cidades quando sabiam que não as iam conseguir manter em pé. Era também um amigo cínico e hipócrita com quem o rei Sargão tinha de lidar.
- Hamurabi, meu caro e excelentíssimo companheiro de Império, não te queres juntar a nós nesta maravilhosa comemoração? – O rei babilónio acenou negativamente, exibindo, ao mesmo tempo, o seu melhor sorriso.
- O que tu tens não é nada. – O seu olhar insidia, brilhante, no mapa das grandes rotas dos mercados estrangeiros. Toda a taberna estava quieta e sussurrante, esperando ansiosamente pela retaliação de Sargão.
- Como ousas sequer pensar nisso, rei de um único povo? Eu tenho o melhor exército, eu tenho as melhores terras, eu tenho os Deuses comigo! – Sargão levantou-se de um salto. A sua testa enrugada de raiva transpirava o poder de um rei egocêntrico e megalómano. Passou as mãos pela cabeça rapada tentando acalmar-se. Convencendo-se de que era e sempre seria o melhor, de que ninguém o bateria e que em breve, muito em breve, os seus filhos governariam o Mundo.
- Tu não tens o maior Império cultural, tu não tens a inteligência nem as técnicas de cultivo avançadas! E antes que o digas, não, eu também não as tenho. Mas sei quem tem. – Avançou para o mapa, ignorando o olhar frustrado e ao mesmo tempo raivoso do seu companheiro. Usando a sua adaga de ferro forjado sinalizou no mapa o Egipto. A grande civilização egípcia, governada por um faraó quase desconhecido devido aos tantos mitos e lendas que o envolviam. – Aqui tudo é possível.
- No Egipto? Na terra dos gatos assanhados e das mulheres carecas? Oh, pelos Deuses! Não me faças rir! – A taberna encheu-se de risadas e assobios, mas Hamurabi nem mexeu um músculo. O ambiente parecia voltar ao normal; o empregado do balcão voltava a servir as cervejas e os guerreiros iam saindo e entrando. Era como se o tempo tivesse voltado a andar.
- Eles constroem gigantescos palácios só com areia. O povo sobrevive a todas as cheias e sabem como as prever. Quem não dava tudo para saber quando Enlil encheria os nossos solos de chuvas e ventos destruindo todas as culturas? Eu não me importava de ter esse conhecimento, mas o meu exército não é tão bom como o teu. – Hamurabi sabia que o Rei da Acádia não fugia a um desafio. A taberna voltou a cobrir-se de silêncio, o tempo parou novamente e as canecas foram pousadas nas mesas de madeira.
O Imperador Sargão I caminhou vagarosamente até ao mapa exposto na parede. Todos esperavam a sua resposta, a sua ordem. Arrancou a adaga do rei babilónio da parede e segurou-a, apreciando o seu peso na sua mão calejada.
- Eu conseguirei a cidade do Cairo. Agora e em qualquer altura! – Gritou, erguendo a adaga no ar. Todos os seus companheiros aplaudiram e trocaram-se gritos de guerra. Hamurabi, o rei babilónio, permaneceu impassível apenas deixando escapar um leve sorriso.
- Não conseguirás. Eles têm um exército ainda maior e melhor que o teu. – Sargão não ligou ao comentário do amigo. Num acto entusiasta abraçou-o e enfiou-lhe a adaga no cinto.
- Meu caro companheiro! Eu conseguirei! Eu sou invencível! Aposto o meu império nisso! – Hamurabi mostrou o seu maior sorriso nesse momento. Tinha atingido o seu propósito.
- Muito bem, caro Sargão, fica aqui estipulado: caso percas, voltes vivo ou não, ficarei com o teu império. Juro por Marduque, deus protector da Babilónia, que tratarei o teu povo como se fosse o meu.
- Não faças tanta festa, Hamurabi. Voltarei e trarei a cabeça desse faraó mistério num espeto. – Hamurabi festejou, finalmente, com Sargão. Mas não pelas mesmas razões.

***

Há quatro meses e cinco dias que Sargão I e o seu exército caminharam em direcção ao Cairo, atravessando os desertos escaldantes e as tempestades de areia. Se chegassem vivos não teriam com certeza força para lutar, mas mesmo que chegassem nas suas melhores condições, não teriam alento, nem armamento, para derrotar um exército tão poderoso como o egípcio.
Hamurabi estava perto de conseguir o que pretendia.
- Meu rei, em que estais pensando? – Um rapaz na primavera da vida aproximava-se vestindo um traje militar e segurando um arco e uma flecha.
- Oh, meu filho! Em breve terás o teu próprio império. – O rapaz largou as armas e lançou um sorriso. A sua voz alterou-se para grave e o ar jovial foi substituído pelo poderoso olhar de um príncipe.
- E poderei finalmente escolher uma esposa e arrancar os Persas das redondezas! – o seu riso de glória foi substituído pela entrada apressada de um dos empregados do seu pai.
- Meu ensis, está lá fora um mensageiro. Diz ser da parte do rei Sargão. – Hamurabi levantou-se o mais rápido que as suas pernas permitiram, tanto era o espanto. E se, por alguma eventualidade, ele tivesse conseguido? E se tivesse derrotado o poderoso faraó egípcio?
- Manda-o entrar! Rápido! – Ordenou Hamurabi, recompondo o seu traje e fazendo sinal ao filho para não se pronunciar.
Um homem entrou, imundo e desorientado. Vinha sem o capacete, mas via-se que era soldado pelos trajes rasgados e pela adaga no cinto.
- O meu senhor enviou-me para entregar esta laje. – Aquele pedaço de barro era um documento que Hamurabi conhecia muito bem. Declarava os seus direitos perante aquele reino e aquela gente. Sargão I não era mais um rei. Perdera tudo quando tentava ter ainda mais.
- Se me entregas isso é porque ele não é mais teu senhor. Onde está ele? – Hamurabi pegou na laje e leu os caracteres decalcados nele. Sem dúvida o grande império de Sargão I era agora dele. O sorriso que trocou com o filho foi de pura glória.

***

Por uma estupidez estava agora sentado a olhar para as suas terras. Suas não. Agora já não eram suas. Tinha sucumbido à esperteza e persuasão de Hamurabi e agora perdera a sua gente e o seu império. Aquilo que tinha conseguido com esforço e dedicação, aquilo que tinha passado de geração para geração. Do seu avô para o seu pai, do seu pai para si.
Doía ver o seu povo aclamar outro rei, ardia-lhe a fúria por ter caído na emboscada do rei babilónio. Era idiota. Era teimoso. Era egocêntrico. Mas isto ensinara-lhe algo.
Não devemos querer mais além do que temos. Se o que temos já é bom, devemos ter muito cuidado com o que ambicionamos a seguir, é comum perder o bom por querer o melhor.





concurso: shot baseada numa frase: é comum perder o bom por querer o melhor.

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